domingo, 14 de junho de 2009

NÃO NOS DEIXEIS CAIR EM TENTAÇÃO...

Eliana Pace

E aí, Santo Antonio, só porque virei balzaquiana não me atende mais? Tem regras especificas para mocinhas casadoiras? Se sim, podia avisar, eu não perdia mais tempo com velas, flores, orações. Podia dar uma indicação de que outro santo é que resolve problemas de mulheres desamparadas, solitárias, sonhadoras, carentes, que porra que eu seja, cara, desculpe, meu santinho, mas quem sabe no tranco o senhor me ouve?

Já nos conhecemos de outros carnavais. Há muitos e muitos anos, andei amarrando você, desculpe, o senhor, de cabeça para baixo com uma fita vermelha e o deixei pendurado junto às minhas roupas. Tá bom que o homem que você, desculpe, o senhor, colocou no meu caminho não era lá essas coisas, mas eu não quis fazer pouco da sua escolha e entrei de cabeça no relacionamento. Deu no que deu. Num casamento complicado com um fulano perdido, carente, sem eira, muito menos beira. Não sei se o senhor se arrependeu dessa indicação e soprou no meu ouvido uma solução. Ou se fui eu que decidi ir contra a sua vontade e partir para outra. De todo modo, já lhe agradeci, certo?

Você também, desculpe, o senhor, não podia saber que sou volúvel e tenho sempre uma paixão recolhida por um ou outro. Já pedi que o santinho jogasse em meus braços o Orlando, ou o César, poderia ser o Rubens, o Milton, quem sabe o Jorge, o Afonso? Cá entre nós, devo ter deixado você, desculpe, o senhor, louco com tanta indecisão. Se os céus tivessem lhe indicado que um deles me servia, ia forçar a barra, não é mesmo? Como não insistiu, acabei desistindo deles, um por um.

O tempo foi passando, fui me divertindo à beça sem que o senhor jamais ficasse sabendo como, mas agora estou de volta. Sei que sua fila está grande, que pras mocinhas de hoje é mais fácil, você, desculpe, o senhor coloca montes de ficantes em volta delas e deixa que elas escolham o melhor pretendente, não deve ter muito preconceito com o que acontece em pleno século 21, não é? Mas nós, as mais experientes, sem tantos atrativos agora, como é que ficamos?

Olha, não ando pedindo mais nada a você, desculpe, ao senhor não, e há muito tempo. Deu pra notar? Fiquei de mal por minha conta. Desta vez, minha tortura foi pior: coloquei sua imagem emborcada em um copo d´água e o deixei sem qualquer oração. Não sei se foi por que você, desculpe, o senhor, estava se afogando ou por causa da minha antiga insistência, agora apareceu um homem na minha vida. Leva jeito de ser legal, boa gente. Veio a seu mandado? Se sim, aceito, vamos ver no que dá. Mas tem um detalhe. O que faço agora com aquele outro maluco que pega no meu pé há mais de ano e até hoje não sabe o que fazer comigo? Foi encomenda sua também? O pior é que é bonito, sedutor pra caramba mas cheio de defeitos, se eu resolver encarar de fato vai dar um trabalho...Pelo menos, Santo Antonio, livrai-me dessa tentação. E ficamos quites...

quarta-feira, 20 de maio de 2009

POMPAS E POMPAS

Olhando bem, não faltava ninguém. O dono da rotisseria havia se postado na primeira fila para garantir uma melhor visão do espetáculo, sem se importar se àquela hora sua presença à frente dos negócios era importante ou não. Estava tão atento ao desenrolar dos acontecimentos que nem respondia aos cumprimentos da freguesia. Os atendentes da lanchonete se apoderaram do lugar mais privilegiado da calçada, bem junto à tipuana florida. Aventais que deveriam ser brancos amarrados na cintura, blocos de notas nas mãos, na certa levariam uma reprimenda quando voltassem aos afazeres. Os alunos do cursinho , que deixavam as salas de aula em constante algazarra, agora em silêncio amontoavam-se no páteo, qual prisioneiros bem junto às grades. A recepcionista do prédio de escritórios havia deixado suas funções de lado para não perder o que quer que estivesse sendo anunciado na rua, no que foi seguida pela telefonista, pelo auxiliar geral, pelo moto boy, pelo síndico e até pelo carteiro. E a dona da boutique do outro quarteirão subia apressada a pequena ladeira, como a não querer perder o início do espetáculo.

Os bombeiros tinham chegado sem muito alarde, não haviam sequer acionado a sirene, para desapontamento das crianças, e agora manobravam o carro vermelho e prata de tal forma que os carros que desciam a rua àquela hora reduziam a velocidade e percorriam aqueles poucos metros em fila indiana, um olho na pista e outro nas pessoas que se amontoavam na calçada .

- Está saindo fumaça do prédio, olha bem, lá no alto. Não consegue ver? Estica um pouco mais o pescoço, é à direita, viu agora?
- Ouve, ouve, é uma mulher gritando, está querendo se atirar do último andar. Parece que já matou o marido, está mantendo os filhos de reféns, que loucura, que Deus proteja esses pobres inocentes...
- Não, o problema não é no edifício, é na casa ao lado. É que entrou ladrão à noite, eu bem que percebi um movimento estranho, tinha perdido o sono e estava na janela do meu prédio, fumando..
- É verdade, as faxineiras - está vendo elas ali?- chegaram de manhã e encontraram uma das janelas aberta. Disseram que os ladrões fizeram um baita estrago, levaram até computador.
- Essa região é tão perigosa... Não lembra daquele assalto ali na esquina no último Natal?
- E aquele político corrupto que foi assassinado no hotel... Minha amiga estava fazendo as unhas quando os criminosos entraram pelo salão de beleza, apontaram as armas para todos e foram subindo as escadarias. Se ela saiu com as unhas feitas? Ah, moço, e é hora de fazer piada? Tenha dó...

Era uma tarde morna de abril, véspera de feriado prolongado, e quem estava ali não parecia ter muita pressa de ir embora. Os transeuntes iam parando e engrossavam a platéia que já era formada por crianças, estudantes, jovens com seus animais de estimação, donas de casa a caminho do supermercados, idosos em direção à farmácia. Os bombeiros montando com destreza a escada Magirus e as pessoas, do outro lado da rua, acompanhando atentamente cada um de seus movimentos.

Quando um dos bombeiros posicionou a escada em direção ao telhado da casa, eu juro que consegui ouvir um “ó” abafado, de admiração.

- Eu não disse que tinha entrado ladrão ? Ô, meu chapa, passa prá cá o fruto da sua teimosia, acertei a nossa aposta - gritou o dono da rotisseria para o rapaz da banca dos jornais, um dos últimos a chegar ao pedaço.
- Quando pegarem os ladrões, passa lá na loja, nossa promoção agora é prá valer, tem um vestido que é a sua cara - dizia a dona da boutique para a telefonista .

O bombeiro subiu os degraus, chegou bem perto de uma das janelas da casa, olhou de perto, olhou de longe e engatou uma marcha a ré. O “ó” cedeu lugar então a um “ué” desapontado que se prolongou até que ele encerrou sua marcha e passou a ajudar os companheiros a desmontar a escada. Os estudantes, então, não se contiveram e iniciaram a vaia que logo ganhou a adesão de toda a platéia presente ao evento.

Quando a Magirus, enfim, foi recolhida, o grupo iniciou a dispersão. A dona da boutique cercando a telefonista, que parecia não dar a mínima para o tilintar incessante dos telefones do prédio; o dono da rotisseria voltando aos negócios com cara de poucos amigos, a contabilizar, talvez, as esfihas não vendidas; o carteiro colocando sua mochila nas costas, a continuar plantando boas e más notícias em seu trajeto; o poodle do apartamento 115 a rosnar para o vira - latas do 212...

Quando um dos bombeiros passou por mim rumo ao carro, arrisquei a pergunta:

- Mas afinal, o que aconteceu?

E ele, ainda constrangido com as vaias recebidas por seu grupo e quase que se desculpando pelo cancelamento do espetáculo, me respondeu meio sem jeito:

- Era só uma pomba que parecia estar presa entre a veneziana e a grade da janela. Quando um de nossos colegas se aproximou com a Magirus para salvá-la, ela saiu voando...

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A CORRENTE

A voz simpática do outro lado da linha tenta me transportar de volta ao passado:
- Estudamos juntas na faculdade. Quem me deu seu telefone foi a Celina.
- Sei...
- Eu sou a Silvia, lembra de mim?
- Não...
- Eu era da turma da Isabel...
- Ah...
- Outro dia fizemos 30 anos de formadas. Não pude ir ao encontro.
- Que pena...
- Estava pensando em almoçarmos juntas, eu, você e Celina...

Anoto na agenda um nome e um sobrenome que não me dizem nada, um telefone para contato e retorno aos meus afazeres. No dia seguinte, a colega volta a chamar.
- É a Silvia...
- Sei...
- Quando é que podemos almoçar juntas?
- Vamos ver, tenho uma vida muito agitada. O que é que a Celina combinou com você?
- Não combinou nada, só me deu seu telefone e disse para nós marcarmos o almoço. Ela aparece se der.

Desligo o telefone com vontade de estrangular a Celina por ter dado meu paradeiro para alguém que não vejo há 30 anos, que nem fazia parte do meu grupo mais chegado de colegas e com quem nem sei o que falar. Mas, domino meus sentimentos assassinos e volto ao projeto que me prende ao micro.

O telefone de casa toca bem no meio da novela preferida. Atendo com certa má vontade e é ela do outro lado da linha.

- Aqui é a Silvia...
- Sei...
- É que a Celina vai viajar, não vai poder almoçar conosco, vamos só nos duas.
- Sei... Mas , como você é mesmo? Loira ou morena?
- Na época eu era loira.
- Ah, seguiu a profissão?
- Não, me casei, morei fora do país por muitos anos, também morei no Sul, faz dois anos que voltamos. Tenho três filhos casados e você?
- Eu tenho um cachorro...
- Ah, meus filhos ficaram morando no Sul...
- O cachorro mora aqui comigo...

Nos dois dias que se seguem, tento dar tratos à bola. Por que essa procura ansiosa 30 anos depois? Se ela está querendo emprego, não tenho indicações. E se quer matar saudade da época, por que não procura a Isabel, que era do grupo dela? O que tenho para conversar com alguém de quem não tenho qualquer referência? Se nem da mesma turma de estudos éramos...Se ainda fosse a Isabel no telefone, a conversa fluiria mais fácil, com certeza. Mas quem era essa Silvia?

- Oi amiga, é a Celina, tudo bem?
- Olá, já voltou de Milão? Como foi de viagem?
- Divino, correu tudo às mil maravilhas. Tenho montes de coisas prá te contar.
- Celina, quem andou me ligando foi Silvia, diz que estudou conosco na faculdade, você deu meu telefone para ela?
- Ah, ela andou me procurando, não sei como conseguiu me encontrar, disse que queria matar a saudade da turma. Também não lembro dela....
- Eu mato você, Celina, essa mulher não desgruda mais do meu pé.
- Não encuca, ela também tentou fazer isso comigo, mas como eu ia viajar passei a ela os telefones de alguns colegas. Mas olha, não rompa a corrente não. Complemente a lista com outros contatos que logo ela está amolando outro...